Thursday, November 15, 2007

14/11/07


«Ora boas tardes. O que vai ser?» inquiriu o empregado, direito como uma tábua de engomar.
«Olhe, traga-me uma imperial. Temos que aproveitar este sol. Daqui a mais já não é tempo de imperiais ao ar livre!»
Enquanto o empregado tratava do pedido instalei-me comodamente na mesa banhada pelo sol quente de uma tarde que já devia ser cinzenta a esta altura do ano. A esplanada vazia fez-me relembrar o Verão, os serões a ouvir boa música à luz das estrelas, as madrugadas escuras donde se alimenta o meu mundo a cada dia. Uma cabeleira ruiva passa deixando cair a carteira, espalhando moedas pelo chão de madeira carcomida pelo sol. Agachei-me ajudando a atarantada presença feminina. Depois de tudo recolhido, agradecimentos incluídos, voltei-me para a mesa onde a imperial já tomava banhos de sol na minha ausência. Cheio de inveja, emborco metade da imperial goela abaixo, arrotando de mansinho em seguida. Espreguiço-me assim como um hipopótamo anão na hora da sesta. Hoje é dia de anos. Dos meus. Com o avolumar dos Outonos, a dormência vai invadindo o meu espaço tornando-me imune a tudo o que é festejos que não partam de mim, e eu oiço-me calado. Que venha o sol fora de estação a meu encontro, que venha a brisa que não sinto, que venha a capacidade de distinguir entre o ser e o ter. O resto vai e vem como uma maré de um desordenado mar ruidoso. E é esse mar ruidoso para o qual foco a minha atenção. Sinto-o satisfeito, vivo e cheio de energia como no primeiro dia, que isto do bom tempo enraíza-se em cada um de maneira diferente. Perco a noção do tempo, os segundos flutuam à minha frente sem que os veja, tudo se torna suave e relativo. Até aquele azul do mar que tanto ansiava fitar. Costuma o Cosmos conceder um desejo a quem faz anos. Também tenho direito a um. Suspiro lentamente tentando conjugar em palavras o que me é segredado dentro de mim. O meu desejo já tem corpo mas não tem nome. Aos poucos baixam em mim os verbos mais certos, os substantivos mais adequados. Formulo por fim o desejo. Que este meu dia seja o dia de quem não tem um dia seu. Largo o meu dia como largaria uma folha seca ao vento ao fim da tarde, esperando que alguém o agarre e o viva em meu lugar, usando-o como eu nunca seria capaz de o fazer, mesmo que muito treinasse.
Levanto voo sem mexer um músculo. Viajo pelas portas entreabertas do que chamo meu. Aterro na minha varanda ao entardecer. Sempre gostei deste barulho, o barulho das crianças a brincarem livremente na escola ao fim da tarde. Este é o barulho que me faz sentir em casa, me conforta como um gesto amigo, sempre que preciso. Sigo viagem e descubro-me numa sala sem retratos nas paredes. Um cão grande deitado sobre si mesmo ao fundo, ao lado uma poltrona funda cercada de pequenos montes de livros, como um exercito que cerca uma cidade fortificada, esperando por mim num futuro indeterminado. Propago-me através da luz e da escuridão. Sob um forte sol de Verão que me faz corar, sinto meus passos de menino num paredão maior do que eu, apoiado pelas mãos do meu pai que nunca me deixa cair. Chapéu enterrado, prometendo uma vida que nunca chegarei a cumprir, absorvendo a cada minuto qualquer estimulo que se atravessa no meu caminho.
De volta, ao fim da segunda imperial, o vislumbrar do fundo do copo implodiu a vontade de ali continuar. Paguei, larguei amarras, soltei o passo. O sol já tinha desaparecido, criando um vazio dentro de mim. Contei vinte seis passos, respirei fundo vinte seis vezes, esvaziei vinte seis minutos. Estou prestes a poder libertar-me graças ao tempo que tudo leva. Com sorte passo por tudo outra vez daqui a um ano. Ainda sem falar, apenas andando, como diz o outro, pensei que poderia estar saturado de criar muros para vir a torná-los parte de mim, como me explicou alguém num dia como este, num Outono passado. Mas parece que não é bem assim. Os muros ficam, assim como eu, sabendo que um dia serei enterrado apenas ao lado do meu nome.

1 Comments:

Blogger rainbow said...

"Os muros ficam, assim como eu, sabendo que um dia serei enterrado apenas ao lado do meu nome."

Das tuas escritas mais sentidas.
A tua frase mais bonita!
Mas, arreee, tão parecido contigo tão sobriamente insano e tão cruel!
Então eu quero mais coisas boas, positivas, Shining!!!!
De vez em quando também não te estraga a personalidade! ;P

2:20 PM  

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