Wednesday, December 03, 2008

14/11/08


Enfrento esta manhã o combate do dia. Sinto-me espiado, mas em movimento. Sei que a minha luta não é contra os segundos, é contra mim mesmo. Sei que tudo irá acabar como começou. Como o medo que constrói sombras no caminho, como as rugas que julgam contar histórias antigas, surjo no espelho atrás de mim. O acordar sempre difícil revela um penacho no alto da cabeça e um sabor acre no céu da boca. Encontro o toque frio da maçaneta da porta na extremidade dos meus dedos ainda quentes dos lençóis, sigo adiante ouvindo o chão ranger debaixo dos meus passos. Sonhei ver edifícios espelhados no mar, iluminados pela sabedoria humana, sonhei ver partir um grande navio cheio de vida, congestionando o tráfego, espalhando abraços em forma de pequenas ondas pelas margens, como afagos incessantes e ritmados que de súbito se dissipam na escuridão.
Seguem-se horas de fastidiosa anestesia em forma de conversas ocas e ar em segunda mão que tanto impregna os pulmões como a roupa. O meu nariz pinga, vermelho, triste, querendo apenas voltar para debaixo dos lençóis adormecidos. O sol frio atrai-me para a janela. Saí. No parapeito espreito as cores daquela paisagem urbana, o cheiro surdo do meu nariz tapado, o esvoaçar de um par de pombos tão faladores quanto eu, instalados num beiral vizinho atraem a minha atenção. O frio retém-me os movimentos, traz-me os cabelos para a testa, faz-me doer os cantos gretados da minha boca. Estranho o silêncio. Ele faz-me pensar.
O meu poder está dividido nas milhares de decisões que tomo a cada novo momento. Tudo o resto me escapa, tudo o resto é me estranho. Quando obedeço sou cego, sou levado por uma mão invisível que me conduz. Quando arranco da minha dor resolvendo partir dali sei que me torno numa borboleta que sai da toca e que vai pairando de flor em flor suspirando pelo retorno à base, sendo impelida para a frente por uma força que nasce dentro dela, que não sabe de onde surge e que não sabe quando vai parar. Volto a olhar as cores da paisagem, os pombos já se acalmaram, o sol já se escondeu atrás de uma nuvem. É hora de voltar.
No transporte, enquanto a minha companheira de viagem lê Tolstoi num livro com páginas amarelinhas e com caracteres russos, uma mulher de nariz feio e sapatos afivelados descobre um súbito prazer, um rasgado sorriso no contacto com um bebé confortavelmente instalado ao colo da sua mãe à sua frente. Ela que nem sabe o que é sentir um bebé como seu, inesperadamente sente uma franca proximidade com aquele micro quadro familiar. No fulgor da multidão também alguém me observa. Percebo então que sou um igual entre os iguais, que o meu olhar é apenas igual a tantos outros, que a minha forma, o meu respirar, a minha música interior tornam-me numa célula, naquele grande organismo que nos faz parecer tão sós, tão acanhados.
O céu prateado mostra-me os dentes, chamando a trovoada que se vai deslocando atrás da charneca. Estrago os sapatos nas poças lamacentas bordadas a óleo dos automóveis. Aquele prateado serpenteia-me as ideias, faz-me fazer o caminho de volta a casa. A iluminação pública acende-se atrás de mim, apontando o meu caminho aos fantasmas que me vão acompanhando.
Cheira a bolachas, o que me sugere que preciso de comer. Lá fora o relâmpago espera que lhe contem os segundos de avanço que tem sobre o trovão, mas não reparo em nenhum dos dois. Sou um esqueleto com vontade de lacrimejar, sou um retrato breve de um presente com saudades do passado, sou talvez apenas um esquecimento numa noite que já vai longa. Sei que o dia finda atrás de mim, e comigo adormece este murmúrio sofrido. O estar calado, o desligar, o deixar de esperar, deixar de me importar, deixar de me lembrar que os segundos são efémeros e repetitivos e que com eles vêm um dia diferente. Sem rótulo, sem peso, sem identidade.
Apago a luz. O nariz contínua entupido, mas quente. Fiz bem em ir buscar mais um cobertor.
Pché08