Wednesday, August 18, 2010

14/11/09


Agora que vou vendo as riscas brancas coladas à minha face demasiado perto para as conseguir focar, vou deixando de ouvir. O chão está pegajoso, frio. Cheira a terra, como se tivesse acabado de chover. Apenas chegam a mim murmúrios pesados, vindos do fundo de mim.
O caminho é comprido. Faz-se bem. Calmamente caminha-se sob folhas tão castanhas como se esperam no Outono. «ajudas-me a apanhar folhas?» pergunta-me o menino. «Sim. Onde as vais pôr?» «Vão mesmo na mão. Preciso de algumas, mas não muitas. É para um trabalho da escola.» «Eu sei.» respondi eu já ajoelhado apanhando cuidadosamente cada exemplar. «Precisas de mais alguma coisa?» Indaguei. «Queres-me ler uma história? Eu sei que a ti contavam-te algumas, mas eu prefiro que mas leias.» - respondeu. Enquanto desfolhava cada página, procurando a melhor entoação, sentia a respiração que saia pela sua boca, o cheiro a lavanda da roupa, a sombra dobrada e a desvanecer-se como a luz do sol atrás de uma nuvem.
«Porque me pediste para te ajudar?» questionei quando o livro já tinha sido fechado. «Eu sei bem que tu eras capaz de as apanhar sozinho.» «Podes responder. Não há problema.» referi quebrando o silêncio instalado. «O que eu queria agora era dormir, mas posso-te responder.» Acenei levemente sem ter noção que o fazia enquanto ele falava. «Nunca imaginaste como vais ser quando fores mais velho? Eu já. Vi-me ontem num sonho. Eras tu. Se assim é, sabia que me podias ajudar, que certamente te lembras como este trabalho para a escola se faz. Sabia que me podias ensinar.» «Já sabes a tabuada?» Questionei cortando-lhe o raciocínio «O que te pergunto é se ainda a sabes.» respondeu. Achei nesse momento que estávamos quites. A ausência de diálogo confirmou a minha ideia. Fiz-lhe uma festa na testa, desliguei o candeeiro, deixei a porta entreaberta e apaguei a luz da casa de banho.

Percebi que estava sem óculos, e só via do olho direito. O que via era uma luz fosca que iluminava o exíguo rectângulo onde me encontrava. Fui-me apercebendo que estava a ser embalado por um movimento constante e pouco uniforme. Ainda me cheirava a terra molhada ou seria a plástico fundido? O cheiro vinha de mim, disso não tinha dúvidas. Não me apetecia falar, nem sabia se o conseguia fazer.
Chutava com convicção, mas com pouca força. A bola, branca com pinceladas de vermelho ia rolando, rodando como que palavras num diálogo entre um par de oradores apaixonados. Via-se na sombra que arrastava consigo, tentava o melhor que podia. O cabelo meio colado à testa e os óculos embaciados davam-me razão. Enquanto nos fomos entretendo com o rolar da bola nos tufos de relva mal plantada o tempo foi passando, a sombra foi-se alongando como que mostrando o sol preguiçoso a desaparecer no céu. A ocasião não trazia consigo muitas palavras e também fiz para não gastar muito as que ainda nos restavam.
Com a bola debaixo do braço perguntou enquanto andávamos lado a lado «Então e agora, quando te volto a ver?» Olhei o rio, olhei a relva. «Não sei. Talvez seja esta a última vez. Gostei da futebolada. Olha bem o que podes fazer com esse pé esquerdo. Vais ter é que treinar bastante, se quiseres.» Apenas acenou como se aquela conversa já não fosse nova. Como se a pergunta que fez tivesse sido ignorada. Tinha razão. «Veste o casaco que já estás a arrefecer.» - disse enquanto me colocava do seu lado direito, para me sentir cómodo. Ele apenas vestiu o casaco. O lado onde se encontrava ainda não interessava. E isso é bom. Atrás de nós ficou um rasto enlameado com a forma de dois pares de botas de futebol.
O olho direito ainda funciona, com direito a lágrimas e tudo. Tudo o que não seja a dor é ainda uma incógnita para mim. Fica por saber se estou cá para o ano para alguém me contar o que me aconteceu nesta encharcada noite de Novembro.