
«E alguém diz «gatos... Quem quer gatinhos?? Acho que vou ficar com este preto e branco. Já lhe dei o nome de Farrusco. É diferente dos outros. Quem quer gatos??.» Um rapaz brinca com as suas miniaturas de carros antigos no parapeito de uma montra. Ao passar para o outro lado da rua, sinto o agradável cheiro a castanhas, de seguida reconheço alguém que está na nuvem de fumo baço provocado pela assadura das ditas. Com o cabelo nos olhos e com milhentas coisas na mão que a impedem de ajeitar o penteado depois de uma forte rajada de vento, está Júlia. Cabelos encaracolados, compridos e ruivos. É esse o seu diapasão. É pelos cabelos que todos a conhecem e para ele onde olham ao primeiro deslumbre. Depois dos habituais cumprimentos, seguimos os dois em direcção à boca da estação do metro. Discorrem frases sem grande sentido para ambos. Fala-se de como estão a correr as coisas, como o céu está cinzento e ameaça com chuva forte. Nada de relevante, algo que ela se vai esquecer com facilidade pois para ela, eu sou apenas um antigo conhecido de episódios passados e praticamente esquecidos.
Sigo em frente, tenho uma missão a cumprir, as batidas da música que me acompanham dominam os meus passos e movimentos corporais. Paro para beber café e dou por mim a ouvir uma conversa corriqueira sobre o jogo do dia anterior entre um trio de velhos. Não ligo, até porque aquela música surgiu no momento errado. Queria ouvi-la quando estivesse só, para poder acompanhar aquele amigo com palavras ásperas e cheias de sentido.
Sinto-me acordar de um sono cambaleante e pouco profundo. Tenho um leve sabor amargo na boca. Ainda faltam várias paragens para sair. O BUS está quase cheio e dou graças por ocupar o meu lugar preferido naquele autocarro. Só, encostado à janela. Assim não incomodo ninguém e o tempo passa mais depressa junto à janela que mostra uma cidade anémica e sem cor. Opto por reparar nos sapatos do autocarro. Dou por mim a tentar associar os sapatos que vejo, às pessoas que os usam. Sinto-me a rir por dentro quando vejo o resultado desse exercício. O tempo não passa, ou melhor, o BUS parece não andar. O relógio não pára. Ele nunca pára, por mais que corramos atrás dele. O dia parece igual a outro qualquer. E para aqueles que me vão acompanhando nesta viagem de autocarro será com certeza. É suposto sentir-me especial, privilegiado, talvez até feliz. Não é todos os dias que se comemora ¼ de século. Não é um dia qualquer, de facto. É aquele dia que ao longo dos anos tornei meu. Meu mesmo. Perto do natal, normalmente cinzento mas sempre com uma aura especial. Este dia com D grande foi-se esbatendo com o passar dos meses, com os aniversários do pessoal do mesmo ano que nasceu mais cedo. Talvez por ser o último do grupo a fazer anos, o efeito seja bem mais esbatido e sem sentido. Na verdade já há vários meses que me sinto com esta idade, e me deparo com todas as questões da primeira crise da idade depois de adulto. Como que a ternura dos 25... Aquele momento que se olha para trás, se vê o quanto não se fez, as expectativas goradas e os ideais furados de tão caducos que até hoje foram defendidos. As mocas que se apanharam, as viagens que se realizaram e o respirar fundo que nos prepara para a caminhada até aos 30.
Recebo uma chamada no telemóvel, «obrigado pá! Fonix, tou mesmo a ficar velho e badocha!! Que se foda! Obrigado por teres telefonado…» Capto um olhar penetrante que se cruza com o meu na rua. Alguém que certamente seria fascinante conhecer, mas não nesta vida. Sigo adiante, sinto-me suar. O concurso para a escolha da roupa certa para mais este dia não foi ganho. Sinto-me demasiado quente e desconfortável, mas se me despisse sentiria frio. Começam a cair os primeiros pingos frescos, grossos e refrescantes de um aguaceiro que se irá prolongar por largos minutos. Sigo viagem. No cimo da rua comprida e descendente vejo dezenas de guarda-chuvas abertos. Parece uma filmagem para um anúncio de uma qualquer seguradora, sugadora de dinheiro. Desço a rua e sinto-me superior por não precisar de guarda-chuva. Sinto-me livre, mais livre do que qualquer um naquela rua barulhenta e demasiado cinzenta. Dou por mim a cantarolar “
Drop the leash/ Drop the leash/ Get outta' my fucking face/ Drop the leash/ Drop the leash!” Não me sai da cabeça. Martela-me sem parar. Sinto-me feliz neste momento, em controlo absoluto do meu mundo, do meu destino. Paro de súbito. Como desejava eu ter agora a maquina. A chuva proporcionara-me um momento inesquecível, a combinação da luz e da água estava perfeita. Ansiava capta-lo e tinha faltado ao encontro, deixando a maquina fotográfica a descansar em casa. Senti-me derrotado.
Uma senhora dirige-se a mim. Fala mas nada oiço que venha da boca dela. Tiro o “phone” da orelha e digo: «Desculpe. Diga?» «Sabe-me dizer onde apanho o autocarro para Algés?» responde ela. Tento falar alto, de maneira que ela me perceba à primeira e opto por um tom reservado e bem-educado. Aceno com gestos para não restarem quaisquer dúvidas «Desce esta rua, vira à direita e vê a paragem. Não é autocarro, é eléctrico. Não há nada que enganar.» Sigo viagem e reflicto sobre o tom e as palavras que acabei de proferir. Dei-me por satisfeito pela minha prestação e mergulhei de novo.
As horas passaram depressa. Provavelmente, demasiado depressa. Desviei o olhar para o relógio. Faltam dez para a meia-noite. O dia acaba como qualquer outro. Ainda é cedo para julgar e classificar o dia. Sinto um leve sentimento de pena por tudo se estar a acabar. Afinal este dia é meu. Meu com M grande, como não há outro no ano. Sinto que não fiz nada daquilo que queria com ele. Resta-me apenas esperar pelo próximo.»
Não será ou não foi nada disto que aconteceu neste dia, mas podia ter sido... para o ano há mais.